O Projeto de Novo Código de Processo Civil em trâmite na Câmara dos Deputados apresenta algumas alterações na disciplina do Reexame Necessário, previsto no art. 475 do Código vigente.
Não são poucas as vozes na doutrina contrárias à manutenção do instituto no CPC, ao argumento de se tratar de um privilégio desarrazoado, incompatível com o princípio constitucional da isonomia.
A nosso ver, a institucionalização da Advocacia Pública em nível federal, estadual e no âmbito das Capitais e principais Municípios do Brasil – ainda incipiente ou mesmo inexistente nos tempos em que o duplo grau obrigatório foi idealizado - torna a regra hoje um privilégio fazendário quase desnecessário e no mais das vezes inócuo.
No entanto, é evidente a persistência de interesses políticos que servem de sustentáculo para a manutenção do instituto na legislação processual, pelo que se faz necessário examinar as alterações propostas pelo legislador.
Assim dispõe o art. 483 do Projeto aprovado no Senado:
Art. 483. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:
I – proferida contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e as respectivas autarquias e fundações de direito público;
II – que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública;
III – que, proferida contra os entes elencados no inciso I, não puder indicar, desde logo, o valor da condenação.
§ 1º Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do respectivo tribunal avocá-los.
§ 2º Não se aplica o disposto neste artigo sempre que o valor da condenação, do proveito, do benefício ou da vantagem econômica em discussão for de valor certo inferior a:
I – mil salários mínimos para União e as respectivas autarquias e fundações de direito público;
II – quinhentos salários mínimos para os Estados, o Distrito Federal e as respectivas autarquias e fundações de direito público, bem assim para as capitais dos Estados;
III – cem salários mínimos para todos os demais municípios e respectivas autarquias e fundações de direito público.
§ 3º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em:
I – súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça;
II – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de casos repetitivos;III – entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência.
Até o inciso II, o novo art. 483 em quase nada difere do atual art. 475. As hipóteses de cabimento seguem as mesmas: sentença proferida contra as pessoas jurídicas de direito público ou que julgarem procedentes os embargos à execução fiscal de dívida ativa da Fazenda Pública.
Aqui, o legislador poderia ter aproveitado a oportunidade para empregar uma redação mais lógica, pois o inciso II está contido no inciso I: a sentença que acolhe embargos do devedor em execução fiscal é inquestionavelmente uma sentença proferida contra a Fazenda Pública.
A interpretação que sempre se fez desse destaque é que a regra não contemplaria as seguintes situações: a) sentenças proferidas contra o Poder Público em demandas sem conteúdo econômico; b) sentenças proferidas contra a Fazenda Pública quando esta figura como autora; c) sentenças que acolherem embargos do devedor em execução não fundada em dívida ativa.
Ora, se a intenção é ressalvar as situações acima, seria de maior rigor técnico fazer tais ressalvas em um parágrafo, com a previsão, no caput, de uma cláusula geral, v.g. sentenças proferidas contra pessoas jurídicas de direito público em demandas com conteúdo econômico.
Acrescentou-se, contudo, um esdrúxulo inciso III, como se fosse uma nova hipótese, que, na verdade, não passa de uma explicitação do alcance da situação prevista no inciso I – sentença proferida contra pessoas jurídicas de direito público em que não é possível identificar, desde logo, o valor da condenação.
A compreensão do significado deste inciso depende do prévio conhecimento das ressalvas feitas no § 2º, concernentes ao valor econômico da demanda, que, aliás, representam as principais inovações substanciais no tratamento da matéria pelo novo Código.
De acordo com a sistemática atual, não é sujeita ao duplo grau obrigatório a sentença que condene o ente público ao pagamento de valor certo não excedente a sessenta salários mínimos, pouco importando se foi proferida contra a União ou contra o Município de Santo Antônio dos Milagres/PI (apontado por recentes pesquisas como o detentor do menor PIB dentre os municípios brasileiros).
O Projeto do novo CPC apresenta limites diferenciados para cada ente público – mil salários mínimos para a União, quinhentos para Estados, Distrito Federal e Capitais, e cem para os demais Municípios.
Apesar de conter algumas impropriedades – uma vez que há Capitais de Estado com PIB significativamente inferior ao de alguns pujantes Municípios do interior – a alteração é consentânea, nesse aspecto, com a essência do princípio da isonomia, pois busca dar tratamento desigual a entes desiguais.
É que, além do fator econômico, as Capitais dos Estados (ao menos a maior parte delas) possuem Procuradorias institucionalizadas em que os riscos de um processo mal conduzido são desprezíveis, ao menos em comparação com o que ocorre em pequenas e longínquas cidades do interior brasileiro, onde lamentavelmente ainda imperam práticas pouco republicanas. Nestas, é compreensível – embora seja juridicamente questionável – a preocupação com o precoce trânsito em julgado de sentenças proferidas contra a Fazenda Pública.
A maior crítica, nesse particular, diz respeito ao método: o inciso III do caput haveria de ser inserido topologicamente como uma “ressalva às ressalvas”, e não como uma hipótese autônoma de cabimento do duplo grau obrigatório. Seria o caso de se inserir um parágrafo esclarecendo o cabimento do disposto no artigo às situações em que o valor da condenação ainda deverá ser objeto de liquidação.
Outras situações em que a remessa é descabida estão no § 3º, que foram ampliadas em relação ao sistema vigente, que exclui a obrigatoriedade do reexame nos casos em que a sentença for fundada em jurisprudência dominante do STF ou súmula deste Tribunal ou do Tribunal Superior competente. Não são contempladas atualmente as hipóteses em que a sentença é proferida com fulcro em jurisprudência dominante não sumulada do STJ ou de jurisprudência consolidada do próprio Tribunal.
O novo CPC, por sua vez, estende a regra às súmulas do STJ e aos entendimentos firmados em julgamento de casos repetitivos pelo STF e pelo STJ ou na apreciação, pelos Tribunais, de incidente de assunção de competência ou do novel procedimento destinado à resolução de demandas repetitivas.
A ampliação realizada pelo novo Código é bem vinda. Não faz sentido impor o reexame de uma sentença proferida no mesmo sentido de jurisprudência consolidada, muitas vezes motivadora da ausência de recurso voluntário pelo ente público. Assim, a extensão nos parece consentânea com o princípio constitucional que institui a razoável duração do processo como direito fundamental (art. 5º, LXXVIII, CF).
Enfim, passando ao largo da discussão acerca da necessidade ou da própria constitucionalidade da manutenção da regra do duplo grau obrigatório no novo CPC, tem-se que as inovações em relação ao sistema vigente tornam a regra mais consentânea com a realidade política atual e com os preceitos constitucionais, ao menos em comparação com a sistemática prevista no CPC vigente.
Além disso, quem lida diariamente com demandas envolvendo entes públicos pode perceber que as situações que escaparão ao alcance da norma que impõe o reexame – seja em razão do valor, seja em função da existência de jurisprudência consolidada – superam em muito as situações que reclamam o duplo grau obrigatório, que se tornará regra processual de raríssima aplicação prática.
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