segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A desconsideração da personalidade jurídica no novo CPC

Uma das principais inovações contidas no projeto do novo Código de Processo Civil é a expressa previsão de procedimento incidental destinado à desconsideração da personalidade jurídica.

Criado por construção doutrinária e até então acolhido pelo Direito Positivo brasileiro apenas em dispositivos legais de cunho material, o instituto agora passará a ter disciplina processual expressamente prevista em Lei, o que, imagina-se, contribuirá para a solução de diversas controvérsias no cotidiano forense.

O Projeto original do novo Código de Processo Civil previa, em seus arts. 62 a 65, o procedimento a ser observado quando requerida a desconsideração da personalidade jurídica. Tais dispositivos foram posteriormente modificados após a tramitação do Projeto no Senado, estando a matéria agora prevista nos arts. 77 a 79.

Assim prevê o art. 77 do projeto, agora em trâmite na Câmara dos Deputados:

“Art. 77. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado na forma da lei, o juiz pode, em qualquer processo ou procedimento, decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios da pessoa jurídica ou aos bens de empresa do mesmo grupo econômico.
Parágrafo único. O incidente da desconsideração da personalidade jurídica:
I – pode ser suscitado nos casos de abuso de direito por parte do sócio;
II – é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e também na execução fundada em título executivo extrajudicial.”

Este dispositivo condensa o que antes estava contido nos arts. 62 e 63, com duas inovações em relação ao projeto original: a previsão expressa da possibilidade de extensão da desconsideração “aos bens de empresa do mesmo grupo econômico” e a menção às espécies e fases processuais que comportam a instauração do incidente – “processo de conhecimento”, “cumprimento de sentença” e “execução fundada em título extrajudicial”.

Inicialmente, é de se observar que o dispositivo peca por imiscuir-se indevidamente na definição dos requisitos – estabelecidos pelo direito material – para a desconsideração da personalidade jurídica.

Adotou-se a teoria maior da disregard, aplicável às situações regidas pelo art. 50 do Código Civil. Assim prevendo, o novo CPC pode dar ensejo a dúvidas quanto a sua aplicação nas situações em que o direito material acolhe a teoria menor – caso, v. g., do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor e do art. 4º da Lei n. 9.605/98.

Bastaria, a nosso ver, a previsão do procedimento a ser observado nos casos de desconsideração, deixando a definição do instituto e de seus requisitos a cargo das normas de direito material aplicáveis a cada situação concreta.

Outra crítica a ser feita diz com a limitação – travestida de extensão – das situações processuais em que se admite a instauração do incidente.

O Projeto original nada dispunha acerca das espécies e fases processuais em que a desconsideração seria realizada através do novel incidente. A nova redação, de seu turno, deixa claro o seu cabimento apenas em algumas espécies processuais, não mencionando, aparentemente de forma proposital, as medidas cautelares antecedentes.

É certo que o processo cautelar deixa de existir como espécie processual autônoma com o novo Código. Contudo, as medidas cautelares – tratadas em conjunto com as medidas de urgência satisfativas – continuam existindo e, por vezes, como objeto de uma fase antecedente do processo de conhecimento.

Como houve expressa menção à fase processual de “cumprimento de sentença”, o silêncio eloquente quanto ao cabimento da medida na fase destinada à concessão de medidas de urgência – cautelares ou satisfativas – leva a crer que o novo Código não permitirá a desconsideração da personalidade jurídica em tais situações, consagrando o entendimento jurisprudencial mencionado alhures.

A nosso ver, tal entendimento se revela equivocado.

Não raro, a medida urgente necessária é a própria desconsideração e a consequente constrição provisória do patrimônio do devedor que faz mau uso da pessoa jurídica. Sendo assim, resta patente a necessidade de se prever – ainda que com regras próprias adequadas às situações de urgência – a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica em medidas cautelares antecedentes.

Adiante, prevê o art. 78 do novo Código:

“Art.78. Requerida a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou o  terceiro e a pessoa jurídica serão citados para, no prazo comum de quinze dias, se manifestar e requerer as provas cabíveis.”

O dispositivo manteve a redação do art. 64 do projeto original, prevendo, contudo, a citação – e não mais a intimação – do sócio, do terceiro e da pessoa jurídica para manifestarem-se nos autos.

Não se revela adequada a inclusão da própria pessoa jurídica, cuja personalidade se pretende seja desconsiderada, como sujeito a ser citado no incidente.

A pessoa jurídica, que já integra o pólo passivo da demanda, ou já foi citada – e assim bastaria ser intimada para manifestar-se, na pessoa de seu advogado, se houver – ou teve a citação obstada justamente em razão das circunstâncias que ensejaram o pedido de desconsideração.

Em qualquer caso, as tentativas de citação emprestarão ao incidente uma morosidade incompatível com a sua finalidade precípua, que é a satisfação efetiva da pretensão da parte credora.

De outro lado, prestando-se o incidente a viabilizar a invasão patrimonial de um terceiro, a participação da pessoa jurídica originalmente devedora é despida de qualquer utilidade, salvo quando ela própria requer a desconsideração (o que, obviamente, é incompatível com a sua própria citação).

Contudo, no que respeita aos terceiros (sócios, administradores ou sociedades integrantes do mesmo grupo econômico), tem-se que a substituição da palavra “intimados”, constante do Projeto original, por “citados” reveste-se de maior rigor técnico.

A citação é condição de eficácia do processo em relação ao citado, que, através deste ato, é convocado a integrar a relação processual, nos termos do art. 207 do novo CPC, mais preciso conceitualmente que o art. 213 do Código vigente.

Assim, servindo o incidente a resolver a questão da possibilidade de ingresso do terceiro no processo, tem-se que o ato de comunicação adequado é a citação, e não a intimação.

Mais apropriado, contudo, seria prever a obrigatoriedade de citação dos titulares do patrimônio a ser atingido pela desconsideração, excluindo desse rol a pessoa jurídica originalmente posta no pólo passivo.

Além disso, deveria ser prevista a possibilidade de provimento liminar destinado à constrição provisória dos bens do terceiro, presentes os requisitos autorizadores da tutela de urgência, de sorte a evitar o extravio patrimonial, muito comum nos casos de abuso da personalidade jurídica.

Por fim, assim dispõe o art. 79 do Projeto:

“Art. 79. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória impugnável por agravo de instrumento.”

A redação põe fim a uma celeuma, dispondo, a nosso ver acertadamente, ser o agravo de instrumento o mecanismo processual adequado para a impugnação da decisão que defere ou indefere a desconsideração da personalidade jurídica.

De se observar que o terceiro atingido pela decisão – que participou do incidente – pode opor embargos do devedor, suscitando questões outras que não as atinentes à desconsideração em si, mas à própria obrigação que lhe foi estendida, caso se trate, obviamente, de processo de execução.

Pode-se afirmar, assim, que a previsão de procedimento próprio destinado à desconsideração da personalidade jurídica é uma inovação acertada do legislador reformista, mas que ainda necessita de algum aperfeiçoamento.

De qualquer sorte, a simples previsão do incidente já representa algum avanço, na medida em que põe fim a uma série de indesejáveis controvérsias jurídicas marginais, divorciadas do propósito fundamental do direito processual.

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